A África como um dos fatores determinantes das RIs Contemporâneas desde a Antiguidade

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A África como um dos fatores determinantes das RIs Contemporâneas desde a Antiguidade

MANUEL HERMETO VASCONCELOS JÚNIOR

RESUMO:

O Artigo busca enfocar no protagonismo africano nas questões internacionais desde tempos imemoriais, com a intenção principal de desconstruir a visão eurocêntrica das relações entre as nações, demonstrando que há fatos relevantíssimos que ocorreram (e ocorrem) no continente mãe, os quais direcionaram o andamento das lógicas politicas globais. Desse modo, faz-se uma rápida referência a acontecimentos longevos, mas as principais abordagens trazem a influência das demandas africanas no imediato pós-Westphália, seguindo até a contemporaneidade. Uma amostragem de exemplos e conjunturas sociopolíticas que se desdobraram na África ao longo dos séculos, em uma evidente capacidade de influência e de peso nas instâncias internacionais, deixando claro que os africanos estão longe de ser coadjuvantes, sendo, na verdade, protagonistas dos estudos globais sobre política, sociedade e cooperação entre países. Para isso, o texto foi dividido em uma primeira parte que traz exemplos desde a Paz de Westphália até a Revolução Haitiana, em fins do século XVIII; na segunda parte, mostra-se um recorte que vai das independências latino-americanas até a Conferência de Berlim, em fins do século XIX e finaliza-se com uma leitura breve da influência d’África nas relações internacionais do século XX.

3. A África do século XX até a contemporaneidade

Conforme verificado na primeira parte desse artigo, o protagonismo africano nas relações internacionais foi efetivamente vilipendiado por ocasião das construções retóricas e políticas do período delineado pela Paz de Vestefália. Desconsiderou-se a ação internacional de nações africanas em institutos humanos como o monoteísmo e a escravidão de fluxo Europa-África, tudo em nome de uma verdade que moldasse a presença prevalecente da Europa no sistema de estados. Na segunda parte, a visibilidade africana não é menos desprezada, já que a leitura ocidental prevalecente dos fatos, que vão desde a independência da América Latina até a Conferência de Berlim (1885), não considera que tais acontecimentos têm uma relação direta com a presença de grandes contingentes africanos nas Américas, que influenciaram a formação desses estados-nações, bem como a postura dos estados latinos diante do mundo. Além disso, é nas terras americanas que germinam as primeiras ideias pan-africanistas, as quais teriam grande influência na África independente do século XX. Nesse sentido, a presente seção trata os fatos que marcam as relações africanas desde o fim da Primeira Guerra Mundial até o século XXI, sempre sob a égide de, como nas partes anteriores desse artigo, que o escantemento do continente nas análises internacionais é mais uma estratégia de impor uma verdade que tangencie interesses predeterminados do que uma leitura fidedigna do protagonismo dos atores africanos no SI.

No início do século XX e com o fim da Primeira Guerra Mundial, mormente no Norte na África, nações muçulmanas obtêm sua independência. As configurações das áreas de influência do pós-Conferência de Berlim começavam a ter seus primeiros desmembramentos. Não que tais desvinculações nacionais significassem uma postura de autonomia dos recém independentes no Sistema Internacional; na verdade, as rupturas eram muito mais uma lógica de apaziguamento de eventuais tensões internas nacionais ou entre as potências vencedoras do pós-guerra. Nesse sentido, um pouco antes do início do conflito mundial, a África do Sul (1910) obtém sua autonomia político-administrativa em um contexto de ajustes geopolíticos da Guerra dos Bôeres. Ademais, o desfazimento do Império Turco-Otomano no pós-guerra provoca a liberação de inúmeros países árabes, incluindo o Egito (1921), que sai do domínio britânico. Contudo, apesar dessas descontinuidades iniciais, o continente africano prossegue no entreguerras sob a maioria das lógicas prescritas na Conferência de Berlim, é a “profundidade e perpetuação” de que Adekeye Adebajo fala em The Course of Berlin, ou seja, o continente africano mantém-se como algo pouco relevante do ponto de vista da influência nas RIs, servindo mais como um instrumento de disputa de influência entre as potências, em uma clara demonstração de que as determinações westfalianas pareciam ter sido renovadas e ratificadas em Berlim (1885), e sua perpetuação seguia século XX a dentro, tendo a desconstrução da originalidade do continente africano, enquanto ente autônomo do SI, já consolidada e perpetrada como fato incontestável perante a visão das nações ocidentais.

Essa dinâmica persiste ao longo da Segunda Guerra Mundial, quando os povos africanos servem nas linhas de combate das grandes potências como se estivessem defendendo sua própria entidade societária, contudo a carnificina e a reordenação do mundo depois desse conflito trariam um novo estremecimento às definições territoriais de fins no século XIX e início do XX no continente africano. Primeiro na década de 1950, surgiram as primeiras independências: Líbia (1951), em virtude principalmente da queda da Itália fascista; já em 1956, surgem as unidades políticas de Tunísia, Marrocos e Sudão, e em 1957 de Gana, como desmembramentos dos impérios franceses e ingleses, cambaleantes econômico e politicamente no pós-Segunda Guerra. Curioso notar que naquele momento também as ideias pan-africanistas e pan-arabistas tiveram tanto sua colocação em prática, quanto um momento de convergência, com a assunção da República Árabe Unida (RAU), que uniu Egito e Jordânia, o projeto do presidente egípcio Abdel Nasser não duraria muito tempo (RAU: 1958-1961), mas acabou simbolizando os desígnios de integração das colônias recém-independentes da África e do mundo árabe.

Apesar dos primeiros lampejos independentistas, é na década de 1960 que as autonomias africanas afloram em massa, reconfigurando sobremaneira a ordem internacional vigente. Sendo o ano de 1960 conhecido pelo Ano da África, quando inúmeras unidades nacionais novas surgiram no continente: Camarões, Costa do Marfim, Benin, Burkina Faso, Níger, Mali, Somália, Nigéria, Mauritânia e Gabão entre outras independências ao longo da década de 1960. Ainda que a adição desses novos estados tenha tido um impacto significativo no SI, mormente nas lógicas decisórias e administrativas dos organismos multilaterais, a realidade político-social de fato pouco foi modificada. Os países africanos foram definidos de acordo com as diretrizes de limites criadas artificialmente pelas metrópoles, que, salvo poucas mudanças, eram as mesmas linhas divisórias advindas da Conferência de Berlim, adicionadas aos ajuntes provocados pelo desfazimento do Império Turco-Otomano no pós-PGM. Além disso, seguiam-se medidas econômicas de privilégios comerciais com as potências europeias, o que provocava uma inserção dependente e agrarista, nos moldes coloniais, das novas nações. Desse modo, efetivamente, as mudanças reais eram limitadas. Adicione-se a isso o ambiente de instabilidade política, com diferentes grupos locais lutando pelo poder, estava-se diante do caldo sociocultural perfeito para manter as tradições retóricas construídas e ratificadas pelos europeus desde a Conferência Westfaliana.

Nessa quadra secular, o século XX, a lógica era dizer que a fraqueza estatal e a pequenez administrativa e econômica dos “novos” estados africanos demonstravam a debilidade do continente, discurso que os europeus já vinham construindo maquiavelicamente há séculos, era o que Valentim Mudimbe chamou de “África Inventada”. Funcionava como uma espécie de ratificação, para os europeus, de que o mundo do estado-nação teria sido criado por eles, tanto que as unidades políticas africanas que ingressavam nesse modelo no século XX, para poderem “prosperar”, precisariam seguir a mesma trajetória das nações do norte do Mediterrâneo. Uma verdadeira falácia, como exposto nesse trabalho em diferentes momentos. Mais uma vez, a Europa criava conceitos e instrumentos retóricos para persuadir a sua ideia de mito fundador dos principais institutos da humanidade, em detrimento muitas vezes de uma matriz cultural secular como a africana, que se estava ou está passando por dificuldades geopolíticas e econômicas é porque não teve sua gênese enquanto povo, território e governo respeitada. Sendo empurrada para uma forma política que não fora orgânica: a África Inventada a que Mudimbe se refere.

Outros casos de independência que ganham destaque são a Guerra da Argélia e as libertações das colônias portuguesas, estas só viriam a ocorrer nos anos 1970, praticamente encerrando os ciclos independentistas da África (exceção a algumas colônias sul-africanas sob o regime do Apartheid, só se libertam nos anos 1990). Sobre a Guerra de Independência Argelina (1954-1962), naquele país do norte africano, as primeiras manifestações, logo no final da Segunda Guerra Mundial, foram reprimidas com um banho de sangue (Revolta da Cabília) executado pelo exército francês, no entanto, em 1956, a Frente Nacional de Libertação (FLN) argelina iniciou a luta armada contra uma metrópole, que acabava de perder o domínio do Vietnã, mas não parecia ter recebido as aprendizagens sobre seu sistema colonial decadente. Diante das pressões da opinião púbica e das perdas e prejuízos causados pela guerrilha dos “pieds-noires”, De Gaulle concede a independência a Argel em 1962. Esse modelo independentista ativaria os anseios nacionalistas em diferentes partes do mundo subdesenvolvido, bem como animaria o pensamento pan-africanista, sob algumas lideranças do continente, de que os africanos unidos poderiam superar as assimetrias que lhes eram impostas pela ordem ocidental.

Nas colônias portuguesas, a revolução dos Cravos (1974) desencadeou a crise final do decadente império luso, que tinha raízes no século XVI. As independências de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde ao longo dos anos 1970 retiraram os últimos escombros metropolitanos da gestão política do continente africano, além de apresentarem para o mundo novas nações, entregaram lideranças que, junto com as demais, confirmariam não só a autonomia e a busca de um lugar no mundo para a África, mas resgatariam as origens africanas como a região que criou ou influenciou a maioria dos institutos sociais e políticos em voga, que os europeus se apropriaram e os chamam de seus desde a Conferência de Westhphália.

Sobre as lideranças dos processos independentistas, é relevante pontuar que estas não são somente chefes políticos ou militares que  livraram seus países do julgo europeu, mas, em alguns casos, são líderes que tentaram reconstruir a percepção mundial sobre a África, baseados principalmente em conceitos de integração do continente, como o pan-africanismo. As ideias pan-africanas não eram uma novidade do século XX, teriam sua gênese nas mobilizações de escravos africanos nas Américas, durante os processos de independência ou de luta política, como foram destaques as mobilizações de negros na Revolução Haitiana (1799), na Revolta dos Malês (Brasil, 1830s), na Guerra de Secessão (EUA, 1865) ou nas inspirações que levaram à formação da Libéria nos anos 1830, como pátria de retornos dos negros à África. Eram os embriões da necessidade de união entre os africanos da diáspora forçada, como maneira de remodelar a colocação dos africanos no mundo e reconstruir a contribuição da África na evolução da humanidade.

Foi sob essas perspectivas que lideranças como Kwame Nkrumah (Gana), Sekou Touré (Guiné), Julius Nyerere (Tanzânia), Mobido Keita (Mali), Habib Burguiba (Tunísia), Agostinho Neto (Moçambique), Leopold Senghor (Senegal) e Amílcar Cabral (Guiné-Bissau e Cabo Verde). No caso desse último, Firoze Manji e Bill Fletcher JR, BILL, em Claim no esay victories – The legacy of Amilcar Cabral, os autores defendem que Cabral é um verdadeiro ícone do pensamento pan-africanista, juntamente com Senghor, por usarem como estratégia nos processos de independências não só a luta a qualquer custo para derrubar a colônia, mas o entendimento da profundidade com que o pensamento europeu influenciava as elites africanas, para, a partir dessa compreensão, desencadear movimentos e atividades políticas que desativassem ou atenuassem essa caricatura europeia na África, a fim de que as novas nações buscassem e reconstruíssem suas reais identidades, que remetem há muitos séculos antes do protagonismo europeu e norte-americano. Era por meio da emergência das verdadeiras origens do continente como berço da civilização humana que, pensavam os líderes, a comunidade africana retomaria seu verdadeiro caminho sociopolítico e cultural.

Nessa linha de autonomia, as diversas lideranças que emergem nos anos 1960 começam a se reunir e a discutir os rumos do continente e do pan-africanismo no século XX, não sem haver divergências internas. “Em 1961 formaram-se dois blocos englobando os jovens Estados africanos: o Grupo de Casablanca, com sete membros, propunha uma diplomacia neutralista e uma ruptura mais profunda com as metrópoles (Nasser, do Egito, Touré, da Guiné, e Nkrumah, de Ghana, eram seus principais articuladores), e o Grupo de Monróvia, integrado por 21 membros, seguia uma linha mais moderada, vinculada ao neocolonialismo (Senghor, do Senegal, e Burguiba, da Tunísia, eram suas maiores expressões). Apesar das divergências existentes na Conferência de Addis Abeba, em 1963, foi criada a Organização da Unidade Africana (OUA), com comissões para arbitramento de conflitos e comitês de libertação para os territórios ainda submetidos. A OUA aprovou, como regra para a África, a manutenção das fronteiras herdadas do colonialismo, face à absoluta falta de outros parâmetros para delimitação dos novos Estados”. (Visentini, p.55, 2013, FUNAG).

Os conceitos e os movimentos pan-africanistas também são reforçados por inciativas mais abrangentes, que englobam nações recém independentes de outros continentes. Nesse contexto, surgem a Conferência de Bandung (1955) e o Movimento dos Não-Alinhados – MNA (1961). A ideia central desses agrupamentos políticos era criar alternativas à bipolaridade da Guerra Fria, pois não se identificavam nem com o bloco socialista, nem com o capitalista, eram uma via à parte: o terceiro mundo. Contudo, esses países recém inseridos na ordem internacional, tão divergentes e assimétricos, tinham pontos sacrossantos em que convergiam: a descolonização e a não intervenção em assuntos internos, princípios que conseguiram fazer constar na Carta da ONU (1945) e que serviam de guia para a integração exterior desses novos estados. Nesse sentido, as proposições de respeito à soberania e autonomia estatal dialogavam fortemente com os desígnios pan-africanistas, o que provocava uma adesão maciça das lideranças africanas ao espírito de Bandung e ao MNA, reforçando a busca de uma reescrita da trajetória do continente, a qual tanto almejavam.

Contudo, esse espírito de liberdade e independência do pan-africanismo vai sendo minado e consegue poucos resultados práticos, a não ser o cabedal político-teórico que é mantido e reforçado até os dias atuais. A derrocada ocorre tanto porque há muitas divergências internas pelas próprias características dos líderes e de suas comunidades, quanto porque há um relativo boicote, como sustenta Vicentini (em A África na Política Internacional), dos europeus a fim de que as vantagens comerciais que tinham com as antigas colônias não sejam dizimadas por movimentos desenvolvimentistas do continente africano; para Bruxelas, Londres e Paris, era necessário manter uma relação comercial centro-periferia com africanos para que a Europa mantivesse altos patamares de lucros e prosseguisse competitiva nas disputas capitalistas internacionais. É nesse contexto que, em 1975, nasce a I Convenção de Lomé, em que os europeus obtêm acordos desiguais e bem vantajosos para si nas relações comerciais com os africanos, caribenhos e com as ilhas do Pacífico, em um regime de virtual livre-comércio em que a capacidade arrecadatória dos Estados em formação africanos é quase neutralizada, o que inviabiliza os projetos de construção nacional, mergulhando o continente em uma ainda maior instabilidade política e dependência externa. Ressalte-se que, no momento da Conferência de Lomé (que teria mais três edições até 1999), boa parte das lideranças pan-africanistas supracitadas já haviam sido depostas ou assassinadas, e grande parte dos países africanos eram capitaneados por golpes militares, muitas vezes patrocinados por governos europeus. Nesse sentido, pode-se inferir que os Acordos de Lomé parecem querer resgatar as linhas de dominação vigentes desde a Conferência de Berlim. Ainda que se tratasse de nações africanas independentes, isso não fora empecilho para manobras políticas e econômicas a fim de enquadrar a África, logo no momento em que o pan-africanismo buscava dizer ao mundo o quão crucial fora e é o continente-mãe. Parafraseando Senghor, “eles não podiam deixar-nos falar”, mas, de qualquer maneira, apesar do revés socioeconômico, a pauta da relevância africana nas relações internacionais desde tempos imemoriais estava posta e, mesmo que colocada em segundo plano, não poderia ser desprezada, mas isso não significa a completa superação das dificuldades, que parece ser a forja sociopolítica do continente negro.

Nos anos 1980 e 1990, os Estados africanos em formação são marcados por instabilidades, guerras civis e um considerável derramamento de sangue de diferentes povos africanos, mormente nas ex-colônias portuguesas, na área de influência da África do Sul, no Chifre da África e em alguns países da África Central, como Ruanda.  Em Moçambique, a pró-ocidental RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana) atuava em conjunto com comandos sul-africanos, destruindo estradas, ferrovias e oleodutos, bem como dispersando os camponeses, algo que arrasou a agricultura e formou bandos de famintos. Em Angola, o exército da África do Sul mantinha a ocupação do sul do país, apoiava a guerrilha da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) e também sabotava a infraestrutura do país, cujo sul despovoara-se. O Zimbábue e os vizinhos que davam acolhida ao ANC (African National Congress) eram igualmente vítimas de constantes investidas sul-africanos”. (Visentini, p.103, 2013, FUNAG). A Namíbia consegue sua libertação do regime de apartheid sul-africanos só em fins dos anos 90, após violento massacre. Em Ruanda, um dos maiores genocídios do século XX é desencadeado quase sob os olhares despreocupados das Nações Unidas; no Chifre da África, Etiópia, Somália e Eritreia se envolvem em sangrentas guerras civis que destroçam suas estruturas estatais em uma das áreas de maior relevância geopolítica do planeta.

Essa implosão de conflitos no continente africano de forma quase concomitante tem muita relação com o arrefecimento da Guerra Fria, quando não havia mais necessidade de disputas por áreas de influência entre EUA e URSS, logo as guerras são secundadas pelas nações capitalistas – postura completamente distinta diante do engajamento no Oriente Médio, como na Guerra do Golfo (contemporânea das disputas citadas). Parecia que a África, após ser moldada segundo interesses externos, teria de arcar com as consequências da artificialidade da lógica geopolítica que não fora criada por ela. Esses efeitos parecem ter consequência até a atualidade. Contudo, alguma movimentação, principalmente após a pressão da opinião pública, ocorreu nas estruturas multilaterais, e as Operações de Paz da ONU passaram a ter como principal destino o Golfo da Guiné e o Chifre da África, a fim de estabilizar as regiões ou, ao menos, dar condições de entrada de ajuda humanitária às regiões de conflito, bem como prestar assistência aos refugiados. A despeito do sucesso ou não dessas ações multilaterais, a presença de forças militares estrangeiras na África tem levado ao que autores como Guilherme Ziebell e Nilto Cardoso chamaram de “securitização do continente”, que se estende ao início do século XXI com a Guerra ao Terror, quando as ações unilaterais das potências estrangeiras em nações fragilizadas pelas guerras internas parecem ser uma conduta aceitável, mesmo sendo condenada pelo direito internacional.

Mais uma vez, as lógicas de manutenção da África em uma posição coadjuvante ou de mero instrumento das relações internacionais parece prevalecer. Dessa feita, o mecanismo adotado são as Operações de Paz ou as interferências militares estrangeiras, que em geral não representam interesses dos atores envolvidos na guerra, ou buscam acordos de paz definitivos. Na verdade, visam manter a exploração de determinados itens comerciais ou áreas estratégicas que servem a lógicas geopolíticas muito distantes das áreas em polvorosas. Por isso, é possível fazer paralelos entre as atuais ações de órgãos multilaterais com as Conferências de Berlim ou Vestefália uma vez que os primeiros não tentam terminar com as instabilidades e conflitos, mas sim manter a África sob um julgo de subordinação e de limitação, bem como de desvalorização sociopolítica. Mas as ideias propriamente africanas parecem se reavivar na esteira do início do milênio.

O alvorecer do presente século parece reagrupar o forçadamente disperso espírito africano, agora pelos métodos das estruturas organizacionais contemporâneas e pela auto avaliação dos africanos em relação aos seus erros e acertos durante a evolução política do continente. Nos termos de Achille Mbembe, em As Formas africanas de auto inscrição, verifica-se que a tentativa de construção da identidade africana pode ser extremamente dificultosa, mas não se vê isso como uma necessidade vital, pois uma generalização teria mais riscos do que benefícios. Independente disso, Mbembe considera que o colonialismo, o apartheid e a escravidão são institutos que influenciaram sobremaneira na construção do self africano, por seu caráter humilhante, desarrazoado e indigno, esses mecanismos impuseram métodos na África que dificultaram a configuração e a definição de seus diferentes povos. Isso se fez desconsiderar, como citado nesse texto, legados de estruturas vitais para a humanidade moderna como a filosofia de modelo greco-romano (inspirada nos escritos egípcios) e o monoteísmo, que a partir da África deu origem ao judaísmo e posteriormente ao cristianismo e ao islã. Essa complexidade de relações e de profundidades conceituais aliados ao alijamento provocado pelos três métodos discriminatórios citados distanciou sobremaneira o africano de uma possível identidade, que diante da alteridade e da conectividade da vida contemporânea não parece ser necessária.

No entanto, o caso africano é peculiar, pois algum liame de integração e de identidade pode melhor conter as problematizações e os óbices políticos que assolam o continente, principalmente desde meados do século XX. Uma forma de aproximação, que não se vislumbra como modelo de identidade comum pleno, é a União Africana (UA). Sucessora da OUA, desde 2000, essa Organização Internacional inspira-se em uma espécie de refundação política que perpassa por uma compreensão histórica da construção da África hodierna. A UA reúne, em 2022, todos os países do continente africano, com exceção de Marrocos, e faz uma interface entre as diferentes instituições comerciais e políticas de integração continentais, a fim de prover desenvolvimento econômico (em fase de consolidação uma zona de livre comércio continental) e soluções políticas locais, sob a orientação de que os problemas africanos devem ser resolvidos pelos africanos. Nesse sentido, a UA tem intermediado negociações ou mesmo sanções a países que são assolados por golpes de estado ou por descontinuidades democráticas, além de ter seu próprio Conselho de Segurança, que desencadeia operações de paz (sob a chancela do CSNU), unindo exércitos dos países africanos, em um modelo único de Operação de Paz, em que se incluem operações militares, de reconstrução física e de estabilização política. Há ainda outras iniciativas nos campos culturais, na cooperação jurídica, além da instalação de uma Corte de Diretos Humanos etc.

Parece que a África, nos últimos anos, vem atentando para o fato de que a desvinculação do continente das lógicas ocidentais seculares que os subjugaram passa necessariamente pela solução autônoma dos problemas. Dessa forma, são resgatadas ideias pan-africanistas, iniciativas de autogoverno seculares do continente, seus métodos políticos históricos, de modo a reapresentar o continente negro como um dos principais atores das relações internacionais contemporâneas.

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Sítio virtual da CPLP (www.cplp.org)

1 COMENTÁRIO

  1. Olá. Eu adorei o que li do artigo nesse ponto 3. Teria a possibilidade da divulgação das outras partes dessa pesquisa? Cheguei a pesquisar e não achei em nenhum lugar. De qualquer forma, tenho grande interesse nessa temática e parabéns para o pesquisador Manuel, que escreveu sobre um assunto de grande importância para as relações internacionais e que cabe ressaltar o protagonismo que finalmente (mesmo que em pequenos passos) a África está ganhando no cenário internacional.

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