Por: Javert Ribeiro da Fonseca Neto, Diretor Jurídico do IDESF, advogado, pesquisador, professor, Mestre em Direito Público – Novembro/2025
O Néctar do Tempo – À guisa de introito, parte-se da concepção de que o vinho transcende a simples condição de bebida alcoólica para se estabelecer como um patrimônio histórico, cultural e alimentar da humanidade. Desde suas origens documentadas há milênios, ele tem sido um elemento central em ritos religiosos, celebrações seculares e na mesa cotidiana. É um alimento nobre, cuja produção artesanal e culturalmente rica o elevou ao status de ‘commodites’ de alta valoração.
Conta-se que o vinho nasceu na Geórgia (cerca de 8000 a.C.) e rapidamente se ligou ao divino. No Egito e na Mesopotâmia, era essencial em rituais religiosos. O seu papel social consolidou-se na Grécia Antiga, associado ao deus Dionísio, onde era o centro dos Simpósios. O vinho funcionava como um catalisador intelectual, “virgulando a prosa” e permitindo o debate de filosofia e política entre os participantes.
Os romanos absorveram e refinaram a viticultura grega, espalhando-a por toda a Europa. Para Roma, o vinho deixou de ser um luxo exclusivo, tornando-se uma necessidade diária. Era consumido por todas as classes sociais – patrícios e plebeus – sendo um marcador de hospitalidade e um elemento central na dieta e nas festas.
Com a desagregação do Império Romano, a arte de vinificar foi mantida viva pelos mosteiros. A Igreja Católica elevou o status do vinho ao torná-lo o Sangue de Cristo na Eucaristia. Essa função religiosa garantiu a continuidade da produção, o aperfeiçoamento das técnicas (dando origem a noções de terroir) e a preservação do vinho como elemento cultural e medicinal.
Na história subsequente, o vinho serviu como um marcador social (consumido pela nobreza em contraste com bebidas populares como a cerveja) e, durante as Grandes Navegações, tornou-se um produto de comércio internacional vital. Hoje, ele permanece um sofisticado agente de conexão social e parte essencial da gastronomia e da identidade cultural em todo o mundo.
Aliás, é cediço, há muito, que in vino veritas (no vinho está a verdade). Vale dizer que sob o efeito do vinho, as inibições diminuem e a pessoa tende a ser mais sincera, revelando pensamentos, opiniões ou segredos que o seu eu sóbrio manteria ocultos. Tácito, o Historiador romano (séc. I d.C.) já descrevia que os povos germânicos realizavam os seus conselhos e reuniões de chefes durante banquetes, justamente porque acreditavam que a embriaguez, embora causasse desinibição, impedia os participantes de fingir ou dissimular a sua verdadeira opinião, garantindo, assim, uma forma de honestidade brutal nos seus acordos [1].
Portanto sua importância é inegável: na Antropologia, o vinho é um marcador social; na História, acompanha o avanço das civilizações; e na Bíblia, é frequentemente simbolizado como elemento de milagre, aliança e prosperidade.
Essa nobreza, contudo, é a chave de sua vulnerabilidade. A alta demanda e o elevado valor agregado do vinho, em especial dos rótulos de prestígio, transformam-no em um objeto de cobiça. No Brasil, por exemplo, essa cobiça, combinada com uma carga tributária que onera o produto legal em média 47%, podendo atingir 67% em certos estados, impulsiona um mercado ilegal colossal. Segundo pesquisa do IDESF (Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras), o contrabando de vinhos no país movimenta um valor estimado em mais de R$ 1 bilhão (FOB), ou R$ 2 bilhões ao considerarmos o valor de varejo e os impostos não recolhidos. Essa dimensão o coloca, ironicamente, como o “maior importador” de vinho do Brasil, superando as compras lícitas de diversos países tradicionais[2].
Com efeito, a ideia central deste arrazoado é traçar uma visão panorâmica e histórica, sem prometer profundidade, sobre a falsificação do vinho como um crime de longa data, desde suas previsões legais na Antiguidade até seu cenário contemporâneo e alarmante, marcado por tragédias e pela atuação de organizações criminosas na região da Tríplice Fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai).
A Pena Capital para a Fraude Babilônica – A preocupação com a autenticidade e a qualidade do vinho não é recente. A fraude era tão prejudicial à ordem social e à confiança comercial que foi objeto de uma das primeiras codificações legais conhecidas.
Enquanto a ‘confiança comercial’ refere-se à expectativa mútua de que as transações de mercado serão realizadas de forma honesta, transparente e conforme o que foi acordado ou prometido – é o pilar que sustenta o comércio e a economia –, a ‘ordem social’ é um conceito mais amplo, que se refere à estrutura, estabilidade e previsibilidade de uma sociedade. Uma sociedade em ordem é aquela cujas instituições (governo, leis, costumes) e relações (entre pessoas, classes, e o Estado) operam de maneira estável e harmoniosa, sem caos generalizado ou anomia.
A fraude generalizada ou a injustiça no comércio poderiam levar a revoltas, conflitos entre classes e, em última instância, à instabilidade do reino. A lei de Hamurabi foi promulgada com o objetivo explícito de estabelecer a justiça na terra e preservar a paz interna.
O Vinho desde sempre teve este essência de elemento Social, pois em sociedades antigas, o vinho não era apenas um produto; era um elemento essencial de rituais, de dietas e do status social. A Taberna era um ponto de encontro e um elemento de coesão social.
O Código de Hamurabi, datado de aproximadamente 1754 a.C. (Babilônia), já previa severas punições para a adulteração de bebidas (principalmente cerveja e, por extensão, vinho), pois a fraude atentava contra a economia e a moralidade pública.
No contexto do vinho antigo (Hamurabi), quando um cidadão da Babilônia comprava cerveja ou vinho da taberneira, ele esperava receber um produto de qualidade padrão e na medida correta, pagando um preço justo, geralmente em grãos. Mas a falsificação (adulteração) ou a fraude no preço quebrava essa confiança, já que o comprador perdia seu grão (dinheiro) e recebia um produto inferior, nocivo ou em quantidade errada. E, como consequência jurídica, o Código de Hamurabi previa punição à fraude com a morte (afogamento), protegendo a integridade da transação, garantindo que o sistema de troca (a economia local) pudesse funcionar sem o medo constante de ser enganado. Sem essa confiança, não havia comércio.
O Artigo 108 do Código determinava explicitamente a punição para a taberneira (figura comum na venda de bebidas) que praticasse fraude, afirmando, noutras palavras, que ‘se uma taberneira não aceitar cereal de cevada como preço pela bebida, mas aceitar dinheiro por peso menor, ou se ela diluir a bebida, eles a levarão e a afogarão’.
O ato de legislar e punir publicamente a fraude (com a morte) demonstrava a força do Estado (o Rei Hamurabi) em proteger os cidadãos mais vulneráveis e manter a hierarquia e a disciplina necessárias para a continuidade da vida urbana. O crime de falsificação, portanto, era visto como um atentado à autoridade e à estrutura da comunidade.
A punição por afogamento no rio — um teste ordálico com pena capital [3] — era aplicada ao ato de fraudar a transação comercial (troca indevida por dinheiro) e por vender bebida adulterada ou com preço injusto. Essa lei ancestral evidencia que, desde que se tornou um bem valioso, o vinho é alvo de indivíduos inescrupulosos que, movidos pela busca rápida por lucro, atentam contra a confiança pública, e o crime era punido com severidade extrema.
Enfim, a severidade do Código de Hamurabi para com a fraude não se justificava apenas pelo prejuízo econômico. Visava primordialmente salvaguardar a “Confiança Comercial”, que era o motor da economia babilônica baseada em trocas justas, e manter a “Ordem Social”, assegurando aos cidadãos a integridade dos bens de consumo essenciais e a estabilidade imposta pela autoridade real.
A Transição do Crime Patrimonial ao Crime Letal – Se no passado a fraude no vinho se limitava à diluição ou imitação grosseira, na contemporaneidade, a prática se sofisticou e, de forma trágica, se tornou letal. O vinho vive um boom de popularidade global, elevando-o a um objeto de cobiça que atrai fraudadores de altíssimo risco.
O caso mais recente e estarrecedor no Brasil diz respeito à adulteração de bebidas destiladas com metanol[4]. O metanol (álcool metílico), um produto químico industrial altamente tóxico, tem sido utilizado por organizações criminosas em substituição ao etanol (álcool etílico) para aumentar o volume e o lucro da falsificação.
E, no Contexto Moderno (Metanol), a quebra de confiança é ainda mais grave: o consumidor confia que está comprando uma bebida segura, mas, na verdade, recebe um veneno. A pena é justificada não só pela fraude econômica, mas pelo risco à vida, já que, mesmo em pequenas doses, pode causar cegueira irreversível e, em maiores quantidades, falência múltipla de órgãos e morte.
No Brasil, investigações recentes (outubro/novembro de 2025) confirmaram uma onda de intoxicações e óbitos em diversos estados, causados pela ingestão de bebidas adulteradas com metanol. Este cenário redefine a falsificação. Ela deixa de ser apenas uma fraude econômica, enquadrando-se agora como crime contra a saúde pública (Art. 272 do Código Penal) [5] com o gravame de resultado morte, exigindo a discussão de seu enquadramento como crime hediondo. Também o CDC (Lei 8.078/90) tipifica condutas específicas (Artigos 61 a 75), como a venda de produto impróprio para consumo (Art. 66). A pena de morte da Babilônia é substituída, ironicamente, pela morte real causada pelo produto adulterado.
A Tríplice Fronteira: O Eixo do Contrabando e a Sombra Argentina – Nenhum lugar ilustra melhor a face contemporânea e criminosa da falsificação de vinho do que a Tríplice Fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai). Esta região não é apenas uma área de intensa circulação, mas está diretamente ligada à Argentina, um dos maiores e mais cobiçados produtores de vinho do mundo. A qualidade inegável dos vinhos argentinos, em especial o Malbec, é o que atrai a demanda e a fraude. Dados da Receita Federal compilados pelo IDESF indicam a seriedade do cenário, com mais de R$ 250 milhões em vinhos apreendidos entre 2020 e 2024, concentrando as apreensões no Paraná e Santa Catarina, na área de fronteira[6].
A geografia, portanto, atua como um catalisador do crime, pois a proximidade e a facilidade de travessia para o Brasil criam um corredor logístico perfeito, sem olvidar que os “rótulos argentinos” de alto valor são os alvos preferenciais, sendo imitados e preenchidos com vinhos de qualidade inferior ou adulterados. Os fraudadores se aproveitam da alta demanda por produtos importados e da dificuldade de fiscalização em um território tão vasto.
É crucial notar que o combate a essa prática é dificultado pela sua ligação com grandes organizações criminosas e pela persistente classificação jurídica equivocada. Muitas vezes, o transporte de vinho irregular, que deveria ser enquadrado como Contrabando (devido à falta de registro e autorização do MAPA), é tratado como Descaminho, resultando em punições mais brandas que não refletem a gravidade da violação à ordem social e à saúde pública [7].
A dimensão antropológica do vinho, enquanto produto de terroir e tradição, é violada quando ele é reduzido a um produto químico genérico, distribuído em um ciclo de violência e ilegalidade que mina a economia legal dos três países.
Urgentia Juris et Tutela Patrimonii – Resta inegável que a criminalidade associada à falsificação do vinho não é uma anomalia contemporânea, mas a metamorfose histórica de um delito ancestral. O telos jurídico, que já em Hamurabi impunha a pena capital para proteger a confiança comercial e a ordem social, contrasta hoje com o alarme das tragédias como o escândalo do metanol no Brasil. Esta fraude transnacional, que encontra um corredor logístico na Tríplice Fronteira, transcendeu o ilícito patrimonial para configurar um
crime contra a saúde pública, onde a pena babilônica de afogamento é substituída, ironicamente, pela morte real causada pelo produto.
A sofisticação da fraude exige uma resposta jurídica e repressiva igualmente sofisticada e transnacional. É um imperativo de ordem jurídica e de proteção ao patrimônio cultural que as estruturas estatais elevem-se ao nível da ameaça. Ademais, quando o vinho ilegal, impulsionado por uma alta carga tributária, já movimenta mais de R$ 2 bilhões, superando toda e qualquer importação lícita do país, o que está em jogo não é apenas a saúde ou a segurança pública, mas a própria sustentabilidade da vitivinicultura nacional e a confiança do consumidor no ‘néctar do tempo’.
Assim, a tutela do vinho – do “Néctar do Tempo” à “commodities global“ – garante que, para além do ditado, a In Vino Veritas seja a verdade legal e sanitária que o Direito deve, inexoravelmente, garantir ao consumidor. Em outras palavras: não basta que o vinho incite a sinceridade (in vino veritas); o Direito tem o dever de garantir que a “verdade” por trás do rótulo seja a autenticidade e a segurança sanitária do produto.
—–
[1] Tácito, Germania, 22 (ou De Origine et Situ Germanorum, XXII).
[2] Dados extraídos do policy paper “O CONTRABANDO DE VINHOS: O maior importador do Brasil”, publicado pelo IDESF (Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras) em junho de 2025. In https://www.idesf.org.br/wpcontent/uploads/2025/06/Policy-paper-O-CONTRABANDO-DE-VINHOS_-O-maior-importador-do-Brasil.pdf
[3] Era um método de julgamento judicial primitivo, comum na Idade Média, baseado na crença na intervenção divina para determinar a culpa ou inocência de uma pessoa. Também era conhecido como “Juízo de Deus” (iudicium Dei). O acusado era submetido a provas de resistência física ou situações de perigo, e o resultado do teste era interpretado como um julgamento de Deus: Inocência: Se a pessoa sobrevivesse à provação, ou se seus ferimentos curassem rapidamente, era considerada inocente, pois Deus a teria protegido. Culpa: Se a pessoa sucumbisse ou apresentasse ferimentos que não curavam, era considerada culpada.
[4] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil/bebidas-adulteradas-entenda-como-funcionava-esquema-de-desvio-demetanol/
[5] O Artigo 272 do Código Penal estabelece o crime de falsificação ou adulteração de substância alimentícia ou medicinal, tornando-a nociva à saúde, com pena de reclusão de dois a seis anos e multa. A mesma pena se aplica a quem vende, expõe à venda ou entrega a consumo a substância alterada. Existe também a modalidade culposa, com pena de detenção de seis meses a um ano e multa.
[6] IDESF, op. cit. (refere-se ao estudo citado na nota [5]). O estudo aponta que, no período de 2020 a 2024, a Receita Federal apreendeu mais de R$ 250 milhões em vinhos, concentrando-se as apreensões na região de fronteira do Sul do Brasil.
[7] IDESF, op. cit. O policy paper ressalta que a ausência de registro e autorização do MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) em vinhos contrabandeados deveria enquadrar o crime como Contrabando (art. 334-A do CP), com pena maior, mas a prática tem sido frequentemente tratada como Descaminho (art. 334 do CP), o que facilita penas alternativas e enfraquece a repressão ao crime organizado.














